Aeroporto Internacional de Miami, um dia qualquer de 1988

Ela ia empurrando o carrinho com as malas, passo a passo, à medida que andava a fila do check-in. Os olhos de turista — e aqui seria melhor dizer todos os sentidos, porque viajar provoca uma espécie de aguçamento das capacidades de sentir, visão, audição, olfato, paladar, tato e mais algum ainda não classificado — então todos os sentidos da viajante observavam o que estava ao redor, as cores das roupas, o som reverberado do alto-falante rezando vôos, horários e portões, o resto do sabor do café tomado às pressas ainda agora, misturado ao cheiro do aeroporto, tudo compondo um cenário que, se agora não tem nada de onírico, daqui a algum tempo terá, e se tornará alguma coisa meio sonho, meio memória, sensação pura.

Ela observava as filas do check-in, pessoas empurrando seus carrinhos, todos no mesmo passo a passo sem nenhuma sincronia, um passo nesta fila, outro naquela, e assim por diante, as filas seguiam, e quem estava agora um passo mais próximo ficaria em seguida um passo atrás ou adiante, e ela começou a reparar num homem que ia passo a passo na fila ao lado, um homem que, depois, ela não saberia dizer se era grande ou não, porque não foi isso que a fez reparar nele.

Era um homem loiro ou quase isso — a luz do aeroporto fazia no seu cabelo um amarelo esverdeado —, magro, estupidamente magro. Tinha dois olhos muito claros e mal colocados numa cara de madeira talhada a machado pelas próprias mãos, grandes e nodosas, e cobria seus ossos com uma jaqueta roxa de cetim e a calça branca de um defunto pouco maior que ele. Mesmo boa, a roupa lhe caía de um jeito torto, esquisito. Um homem feio — mais tarde bonito, por ter se tornado meio sonho, meio memória — mas interessante. Seguia na sua fila sem carrinho, sem bagagem que não fosse uma grande bolsa pendurada num ombro, enganchada na ponta saliente de uma clavícula. Pela abertura dessa bolsa, mistério, escapavam penas, penas pretas e compridas, muitas. Um tucano?

Seus olhos enormes e claros fitavam o chão com raiva, como se o piso de mármore lhe tivesse feito alguma coisa de muito grave. E agora, como punição, ele mostrava à pedra o significado das palavras duro e frio. O chão, intimidado, deixava-se pisar sem reclamações. Ela, compadecida da pedra, observava o homem. A certa altura e repentinamente, ele chicoteou sua ira ao redor e encontrou os olhos dela, tristes e curiosos. Ela foi obrigada a encarar o vampiro que havia lá dentro e, magnetizada, não fez nada, não pôde fazer nada a não ser olhá-lo, endurecida. Eles se espiaram por imensos segundos. E o vampiro sorriu.

Ela não pôde lhe retribuir, porque logrou ver um fio de sangue a escorrer de sua boca. E pior: teve a certeza de que o conhecia.

***

Boulevard Saint Michel, Paris, 1991, manhã de sábado

Ela vinha andando por uma calçada, olhando a cidade, os olhos de turista — e aqui seria melhor dizer todos os sentidos, porque viajar provoca uma espécie de aguçamento das capacidades de sentir — todos os sentidos da viajante observavam o sol de cores outras, como se fosse outro o sol que ilumina Paris, o cheiro da cidade, os carros roncando em timbres diferentes, o sabor do café tomado no hotel — tudo compondo um cenário que, se agora não tem nada de onírico, daqui a algum tempo terá.

Ela dobra uma esquina e tromba de frente com um homem — ela nunca saberá dizer se ele era grande ou não —, seu rosto vai de encontro ao peito ossudo, os óculos voam, batem no ombro dele, cheio de clavículas pontudas, visíveis mesmo por debaixo da jaqueta de cetim roxo, e caem ao chão.

Ela, meio cega, não tem muito que fazer a não ser contar com a gentileza daquele borrão roxo que se curva, apanha e lhe devolve a visão. Enquanto o foco se faz, ela lhe vê rapidamente o sorriso, olhos claros transparentes misturados ao Fahrenheit a olhar para ela e a dizer:

— So sorry…

Desta vez — disto ela ainda se lembra, mesmo que tudo já tenha se tornado meio sonho, meio memória, sensação pura — não havia um fio de sangue, as pedras não tinham medo dele, e ela sentiu alguma coisa ao mesmo tempo refinada e selvagem, era como se ouvisse uma ópera a ser cantada na selva.

Antes que ela pudesse ligar coisa com outra, o homem olhou em frente e em frente seguiu seu caminho, havia uma obstinação nesse seguir, e lá se foi a jaqueta de cetim roxo por trás de uma esquina do Boulevard Saint Michel.

***

Dois meses depois, em casa, ela abre o jornal e lê a notícia da morte de Klaus Kinski, aos 65 anos, vítima de ataque cardíaco. Seu coração, que ela quase havia tocado com a testa, havia parado. Seus olhos — mesmo impressos a preto e branco — continuavam ali, claros e transparentes, ainda eram Nosferatu e Fitzcarraldo, dois sujeitos que ela encontrou pelo mundo e que morreram, talvez, sem saber da importância que ela dava a uma esquina. Talvez.

Foi como trocar um segredo com aqueles olhos, um carinho, um afeto. Um segredo tão secreto que nem ela sabia ao certo do que se tratava.

Ela o olhou mais uma vez e, sem medo, lhe disse:

— So sorry, Klaus…

E a tinta do jornal cheirou a Fahrenheit.

(escrito em homenagem a esta amiga
— que é também a protagonista da história —,
ilustrado por este amigo e
publicado nesta revista)